Como as heurísticas e vieses afetam nosso julgamento?

Não somos tão racionais quanto imaginamos.

Tatiane Francisco
UX Collective 🇧🇷

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Desenho de um cérebro colorido, em um fundo escuro. Há uma luz contornando todo o cérebro.

Nosso cérebro é um órgão fantástico. Pesando cerca de 1,5 kg, com aproximadamente 86 bilhões de neurônios — se você está se perguntando quem contou esses neurônios todos, precisa conhecer o trabalho da neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel — fazendo cerca de 10 mil conexões cada um, ele é uma máquina poderosa.

Embora estejam tentando, ainda não há uma rede neural artificial capaz de superar a nossa capacidade cognitiva.

Imagem com ilustrações de um cérebro, apresentando algumas regiões dele, como o cerebelo, por exemplo.
Fonte da imagem: Revista Pesquisa, FAPESP

Tudo muito impressionante, mas (sempre tem um “mas”) ele só consegue processar um monte de coisas pela capacidade de usarmos nossas experiências anteriores e sentidos para preencher lacunas, filtrar informações, atribuir significado — e não fazemos isso pouco, já que cerca de 95% do nosso processo cognitivo é feito neste modo “rápido”.

Imagem que contém uma frase com letras embaralhadas, que diz: "sem dúvida, você é capaz de ler e entender este texto com letras trocadas."
Doido, né?!

Se o nosso cérebro dependesse de ler e entender cada letrinha para formar a palavra, seria um gasto de energia maior e desnecessário, já que aprendemos a posição das letras para formar essas palavras antes.

Sabe aquele “de” que tá faltando na frase? Tenho certeza que você o utilizou, ainda que ele não esteja ali. Basta resgatar a “imagem” dessas palavras na sua memória.

Dado interessante: nosso cérebro leva cerca de 13 milissegundos para reconhecer uma imagem. É rápido demais.

É de se esperar que pegar esses atalhos mentais para interpretar as coisas vai “dar ruim” em algum momento. E às vezes dá.

É normal que a gente perceba as coisas pela nossa “lente”, que pode estar meio embaçada e não refletir a realidade.

Isso é o que chamamos viés: falhas e distorções de julgamento, que ocorrem inconscientemente.

Saber disso abalou as teorias tradicionais da economia (Homo economicus) que defendiam que as pessoas tomavam decisões de forma egoísta, competitiva e racional.

A partir dos testes de modelos cognitivos dos economistas Amos Tversky e Daniel Kahneman (sim, autor do livro Rápido e Devagar), ficou claro que vieses e heurísticas (além das nossas emoções) influenciam, e muito, as nossas decisões.

Assim, a teoria da Economia comportamental passou a ganhar espaço.

Gif com o Carl Sagan apontando com o dedo pra sua própria cabeça, e a frase "a jornada para cada um de nós começa aqui."
"A jornada de cada um de nós começa aqui." — Carl Sagan

Um pouco mais sobre heurísticas e vieses

De forma muito resumida, heurística é um atalho mental (ou mecanismo cognitivo) que usamos para “resolver” (aspas, porque nem sempre ela vai nos levar à solução de fato) um problema em condições de incerteza.

Uma das heurísticas comuns é a de disponibilidade, que diz que ao formular respostas ou tomar decisões, consideraremos aquilo que estiver disponível em nossa mente.

Por exemplo, se você perguntar para uma pessoa que já foi assaltada estimar quão violenta aquela cidade é, provavelmente ela vai te dar um número mais alto do que uma pessoa que nunca foi assaltada naquela mesma localidade.

Gif em que um homem de terno diz: "Em minha experiência, a linha reta nos leva para a verdade".
"Na minha experiência, a linha mais reta leva à verdade."

Quando estamos interpretando o que está acontecendo ao nosso redor, podemos cometer erros sistemáticos ao tomar decisões que, por sua vez, podem ter relação com as heurísticas, mas também com nossas emoções, fatores socioambientais e socioculturais, motivações pessoais e até mesmo na nossa habilidade de processar informações.

Esses são os vieses cognitivos ou vieses inconscientes. A gente geralmente não percebe que estamos sob o efeito de um viés, por se tratar de um pensamento automático.

Imagem que mostra o desenho de um cérebro no centro, e circulando ele, dividido em 4 quadrantes, uma série de nomes de vieses cognitivos.
Talvez você já tenha visto esse "mapa" de vieses cognitivos por aí.

Exemplos de vieses

Maldição do conhecimento (The Curse of Knowledge)

Quando alguém sabe muito sobre um assunto, e assume incorretamente que outras pessoas possuem o mesmo nível de conhecimento.

Talvez você já tenha passado por isso ao mudar de empresa, ou chegar em um novo time no trabalho, e as pessoas falarem termos específicos da área ou do negócio como se você já soubesse do que se trata.

Ou talvez você já tenha tentado entender um texto jurídico…

Print de uma imagem com o texto: "Entendo que estão presentes os requisitos exigidos para a medida acautelatória, quais sejam, a plausibilidade do direito pleiteado, a verossimilhança entre o alegado e a tutela jurisdicional pretendida, bem como a demonstração de ocorrência de provável dano jurídico caso a medida não seja concedida atempadamente.”
QUÊ?!

Se atentar para esse viés e ter empatia pode contribuir para uma melhor comunicação e inclusão, como fez a juíza goiana Aline Vieira Tomás, que simplificou a linguagem, inclusive usando elementos gráficos.

Sim, ela literalmente desenhou para gente entender com mais facilidade. Maravilhosa, né?!

Viés atencional

Existem várias coisas acontecendo ao seu redor agora, mas você escolheu prestar atenção na leitura destas palavras.

Esse é o viés atencional, em que filtramos informações do ambiente e escolhemos aquela na qual queremos prestar atenção.

Embora essa habilidade seja fundamental, a gente pode focar tanto em uma coisa, que deixa de perceber outras, mesmo que elas estejam acontecendo bem na nossa frente.

Quem matou o Sr. Smythe?

Viés da vítima identificável

Você consegue mensurar o que são mais de 643 mil pessoas mortas na pandemia de Covid no Brasil? Provavelmente não, pois nosso cérebro não é muito bom em fazer mensurações e cálculos matemáticos.

É um número tão grande, que foge da nossa capacidade de compreensão.

E se eu te falar ser o equivalente a mais de 8 estádios do Maracanã lotados? Talvez agora você tenha uma ideia melhor do impacto.

Dentre essas 643 mil pessoas, temos a Maria Elisa, mãe de 2 crianças e grávida de 8 meses. João Marcelo, com quem Maria casou há 13 anos, pegou Covid e após dias na UTI em estado grave, faleceu. Sua filha mais nova, de apenas 3 anos, pergunta constantemente quando o pai vai voltar.

Por não conseguirmos ter noção da representatividade de um número tão grande, há uma probabilidade maior de sentirmos maior empatia pela história da Maria e João do que pela quantidade total de vítimas.

Esse é o viés da vítima identificável, muito utilizado para humanizar e sensibilizar as pessoas para grandes acontecimentos e tragédias.

Tá, mas o que isso tem a ver com design?

Tudo. As heurísticas, vieses e processos automáticos também podem afetar nosso julgamento, enquanto pessoas designers. Além disso, em maior ou menor grau, todos temos nossos preconceitos.

Vamos fazer um exercício bem rapidinho aqui.

Crie uma imagem mental que represente a Juliana Monteiro, 35 anos, solteira, designer, que mora em São Paulo/SP.

Pensou em como é a Juliana?

Aposto que há pouquíssimas chances de você ter pensado que a Juliana é:

  • Uma mulher trans
  • Uma pessoa com deficiência
  • Uma pessoa com os cabelos raspados.

Ao longo da nossa vida, fomos levados a criar caixinhas e padrões para coisas e pessoas.

Lembra dos nossos atalhos mentais? Muitos deles foram formados pelas nossas experiências em sociedade, pela nossa cultura e por aquilo que aprendemos ao longo da vida.

Assim, muitos preconceitos são formados e mantidos, conscientemente (o que pode acabar nos levando para atitudes e posturas extremas) ou inconsciente (que dependem da nossa atenção e disposição para que sejam quebrados).

Saber que os vieses existem e que somos pessoas preconceituosas em algum nível, são os primeiros passos para que possamos nos atentar aos nossos pensamentos e atitudes.

Humildade para reconhecer e aprender, e disposição para a mudar o nosso olhar a partir dessas percepções, é o que vai nos ajudar a quebrar esses padrões viciados.

O que fazer agora

Se você chegou até aqui, há grandes chances de se atentar mais caso esteja usando uma comunicação difícil e específica com uma pessoa leiga — isso é especialmente importante quando fazemos pesquisas, apresentações e dinâmicas — e que personificar nos ajuda a criar empatia. Mas é importante que essa personificação reflita a realidade e seja inclusiva.

Esses 3 vieses, e mais outros 197, foram catalogados em um repositório que criei no Notion.

Eles foram divididos em 4 problemas com os quais nosso cérebro precisa lidar o tempo todo:

  1. Excesso de informação,
  2. Falta de significado,
  3. Decisões rápidas, e
  4. Definir o que é importante a ponto de precisarmos memorizar.

Cada problema tem uma série de estratégias que a gente acaba usando para conseguir lidar com ele. Essas estratégias para tentar resolver o problema é que podem acabar nos levando para o uso de heurísticas e vieses.

Essa forma de classificação foi feita pelo Buster Benson, e acredito que seja uma forma mais interessante do que a classificação padrão, e que nos ajuda a compreender com mais facilidade.

Muito do que você encontra no repositório foi traduzido e/ou adaptado deste trabalho feito por ele. Nas referências, você encontra também outros links para materiais e conteúdos sobre vieses e heurísticas.

Cada viés possui um resuminho, para ajudar na identificação e compreensão. Com o tempo, pretendo ir adicionando outros conteúdos e referências na página de cada um deles.

A ideia aqui não é deixar você maluco ou maluca tentando aprender, ou decorar cada um (não fiz isso e nem recomendo), mas fornecer um repositório para você poder consultar sempre que quiser, com a possibilidade de fazer busca pelo conteúdo para te ajudar a encontrar e filtrar o que precisa.

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💼 Designer de produtos | 🤓🧠 Estudante e curiosa sobre neurociências, psicologia e a relação dessas áreas com design | https://tatty.me/linkedin